terça-feira, 1 de novembro de 2011

CEMITÉRIOS

Carlos Drummond de Andrade

 
I – GABRIEL SOARES

O corpo enterrem-me em São Bento
Na capela-mor com um letreiro que diga
Aqui jaz um pecador
Se eu morrer na Espanha ou no mar
Mesmo assim lá estará minha campa
E meu letreiro
Não dobrem sinos por mim
E se façam apenas os sinais
Por um pobre quando morre

II – CAMPO MAIOR

No Cemitério de Batalhão os mortos do Jenipapo não sofrem chuva nem sol; o telheiro os protege, asa imóvel na ruína campeira.

III - DOMÉSTICO

O cão enterrado no quintal
Todas as memórias sepultadas nos ossos
A casa muda de dono
A casa – olha – foi destruída
A 30 metros no ar a guria vê a gravura de um cão
Que é isso mãezinha
                        E a mãe responde
Era um bico daquele tempo
Ah que fabuloso

IV – DE BOLSO

Do lado esquerdo carrego meus mortos
Por isso caminho um pouco de lado

V – ERRANTE

Urna
que minha tia carregou pelo Brasil
com as cinzas de seu amor tornado incorruptível
misturado ao vestido preto, à saia branca, à boca morena
urna de cristal urna de silhão urna praieira urna oitocentista
urna molhada de lágrimas grossas e de chuva na estrada
urna bruta esculpida em paixão de andrade em paz em remissão

vinte anos viajeira
urna urna urna
como um grito na pele da noite um lamento de bicho
talvez entretanto  azul e com florinhas
urna a que me recolho para dormir enroladinho
urna eu mesmo de minhas cinzas particulares.

ANDRADE, Carlos Drummond de (1902 -1987). José & outros. 9ª ed. Rio de Janeiro. Best Seller, 2006., pp. 71 - 72.

Nenhum comentário:

Postar um comentário