segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A morte do Homem cordial

 
Ao lado de Guido Mantega, Dilma Rousseff visita Lula em São Paulo.
Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula.

[...] Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade (grifos nosso) – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral de padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante (Raízes do Brasil, 2003, págs. 146-147).

Esta citação foi extraída do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda é uma critica a partir da assertiva de Ribeiro Couto. Mas, nos últimos dias tenho me questionado acerca desta tese. Este questionamento não partiu de meras especulações metafísicas ou de um mero exercício intelectual. Surgiu da indignação, da perplexidade ante o avanço da barbárie em nossa sociedade. Dois episódios significativos se destacam nesta análise: o primeiro foi a execução do ditador Kadaffi. A espetacularização de seu martírio, o deleite da mídia em mostrar as cenas da barbárie, os comentários em blogs, sites e vlogs fazendo a apologia a estas cenas insanas me causaram estupor. Porém, a cena de torpeza repetida à exaustão pelos meios de comunicação não é a única fonte do temor do avanço da barbárie em nossa sociedade. A divulgação por parte da imprensa que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi diagnosticado com uma neoplasia maligna na subglote, ou seja, um tumor maligno na laringe foi também ponto de partida para essa reflexão. Em uma sociedade mediática, a notícia se espalhou de forma muito rápida. Nas páginas dos jornais online havia já descrito os detalhes da doença e os procedimentos pelos quais o ex-presidente deveria ser submetido. O Assunto caiu na rede. Contudo, um ingrediente novo seria acrescentado neste caso: a maldade, a perversidade e a torpeza. Alguns blogueiros, vlogueiros e em alguns sites pipocavam um falso debate: o ex-presidente deveria se tratar no SUS (Sistema Único de Saúde), porém este debate não seria o centro da questão. Um determinado vlogueiro desejou em bom e alto tom, com gigantescas doses de escárnio a morte do ex-presidente, (não direi aqui o nome desse sujeito para não divulga-lo, não vale apena). Se fosse apenas uma opinião isolada, não valeria o debate. Não valeria a angústia. Seriam apenas a opinião de uma pessoa movida pelo ressentimento ou ainda outros sentimentos menos nobres. O que nos perturba é a generalização de um discurso anti-humanista sendo disseminado nas redes sociais. O que nos deixa perplexo é a intolerância, a vontade de eliminar o adversário. Quando falo “eliminar”, não estou usando de metáforas. Os comentários que li em vários sítios, blogs e nas redes sociais, falam em morte física. Matar mesmo. Este comportamento vai contra todas as concepções defendidas pela sociedade dita “civilizada” ocidental. Este comportamento nos remete ao perigo Fascista: a simples eliminação daqueles de quem eu não gosto ou de mim discordam. Este tipo de comportamento nega um dos princípios fundantes de nossa sociedade moderna ocidental e sintetizada nas palavras de Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que tu disseres, mas defenderei até a morte o direito de pronunciá-las.” Que sociedade é esta que deseja a morte (física, a eliminação) daqueles que a incomodam? Hoje, alguns escondidos no anonimato proporcionado pela internet, soltam sua fúria, sua besta que esta presa sob o manto da hipocrisia. Incomoda-me ver um sujeito se dar ao trabalho de gravar um vídeo, postar na rede e proferir barbaridades: desejar a morte de um ser humano. Certamente, ao lhe dar uma armar, este sujeito não hesitaria em atirar naqueles de quem ele discorda. Fico desolado em perceber que conseguimos levar o homem espaço exterior, quebrar átomos, construir máquinas fantásticas, mas, ainda não conseguimos fazer este homem olhar para o outro como semelhante. Fechar os olhos, tapar os ouvidos ou calar-se diante deste tipo de comportamento pode nos levar a uma viagem sem volta para a escuridão. Eric Hobsbawm em seu livro Era dos Extremos ao terminar de expor os horrores da era das guerras totais nos fala: “Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto [...]. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade que ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se te tentamos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.” (p.562). Não temos o direito de demonstrar impotência diante de alguém que deseja o fim do outro por discordância ideológica. Temos o dever de denunciar o avanço da barbárie. Não devemos esquecer a lição de Walter Benjamim (1996, p. 224-225): “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cansado de vencer”.

Hélio Costa Jr. é professor de Teoria da História na Universidade Federal do Acre e humanista convicto.